É correto atribuir a Casa Grande & Senzala o papel de fundador do mito da democracia racial? Existia de fato esse debate quando o livro foi escrito ou, caso afirmativo, como ele se dava? A década de 1930 nos fornece não só o clássico de Gilberto Freyre, mas também dois outros pelo menos, de Caio Prado e Sérgio Buarque. Todos dialogavam entre si, e a discussão do papel da escravidão na sociedade brasileira quase pode ser atribuído ao primeiro dos clássicos temporalmente, a do sociólogo pernambucano, que ajudou a impulsionar o debate sobre o tema durante aqueles anos.
Em que medida a teoria da "democracia racial" não foi elaborada em período posterior, quando adquiriu passaporte de cidadania universal, num mundo que se tornava cada dia mais "politicamente correto"? Em que medida Casa Grande & Senzala não foi relido em período posterior, e logo alçado à condição de legitimador da desigualdade, se aproveitando do lamentável posicionamento político de seu autor depois dos anos que ganhou fama? Aí entram na história não mais figuras como a dos historiadores acima mencionados, mas nomes impressionantes como os de Elio Gaspari, Reinaldo Azevedo, Míriam Leitão e Ali Kamel. É todo um debate racial reencenado desde pelo menos a década de 1980, legitimado dentro e fora da academia, com seus detratores e defensores invariavelmente defendendo posições análogas a partir de pontos de vista diferentes. É um pouco dessas duas histórias que vou contar aqui.